Cleidinho e Flávia já haviam passado há muito de doulandos para amigos. Conheci a Flavinha num grupo de doulas em que ela procurava uma doula, pois o nascimento do seu primeiro filho, o César, havia sido por uma cesariana mega desnecessária. Encontrei total empatia por parte do casal. Foram muitas rodas, encontros, conversas, até que, quando me dei conta, a amizade já transbordava das questões relativas ao parto e a identificação rolava solta em várias outras áreas das nossas vidas.
Para comprovar minhas palavras, digo que na véspera do parto estávamos nós cinco (meu marido, eu, Cleidson, Flávia e Ernesto) no teatro da Caixa, assistindo a uma peça maravilhosa. Na despedida, minha doulanda queridíssima disse que estava sentindo algumas dores, que qualquer coisa me ligava de madrugada. Estávamos torcendo muito por um nascimento no final de semana, já que Cleidinho e eu somos professores, então tentei não criar expectativas, porque ela já vinha em pródromos há algum tempo, e a maior chance era de ser um alarme falso. Pois é, não era.
Telefone tocou às 2:15 da manhã. Era Cleidinho, dizendo que as contrações estavam ritmadas, de 4 em 4 minutos. Troquei de roupa, catei minha malinha e fui pra lá. Tinha muita gente no apartamento (família de fora de Brasília que tinha vindo para conhecer o bebê quando nascesse e dar apoio ao casal), mas todos dormiam. Flávia estava fazendo um lanche no quarto. As contrações estavam bem tranquilas até, então propus que todos descansássemos o máximo possível. Apagamos a luz, deitamos e tentamos relaxar, mas a calmaria logo passou, interrompida por um "Ai, meu Deus... Acho que a bolsa estourou...". Tinha estourado, sem dúvida uma rotura baixa: muita água de ensopar o colchão e seguir escorrendo pelas pernas.


A partir daí, as contrações se intensificaram, mas ainda estavam bem suportáveis. Cleidinho e eu nos alternávamos nas pequenas tarefas e na companhia a Flávia. E assim fomos seguindo madrugada adentro, uma noite de muita chuva, até que as contrações começaram a vir a cada 2 minutos e estavam bem longas e intensas, chegando a durar 1'30". Pegamos as coisas, acordamos as avós de Ernesto para um beijo de despedida e seguimos para o HMIB com o dia já claro.
Demoraram muito, muito tempo mesmo para chamar a Flávia para ser examinada. Então, no corredor do hospital, seguimos rebolando, respirando, caminhando. Ela "lutava por cada contração", como ela mesma disse, pois, além do hospital ser um ambiente que não favorece o relaxamento, as pessoas em geral se mostraram de fato inconvenientes, perguntando, interrompendo, passando informações óbvias, desrespeitando as contrações... enfim, "cheios de assunto", kkkkkkk.

Quando passamos pelo exame, Ernesto com os batimentos cardíacos maravilhosos, Flávia com 4 cm de dilatação. Após alguma negociação, conseguimos exercer nosso direito e Cleidson e eu entramos com ela, apesar de o HMIB só autorizar um acompanhante. A felicidade e a paz reinaram nas duas horas seguintes à internação. Vários pequenos milagres estavam fazendo com que tudo transcorresse exatamente do modo como sonháramos que seria. As contrações da Flávia se intensificaram com o ambiente mais favorável, e ela começou a se queixar da dor e do cansaço.
Um novo exame de toque mostrou que a contração não havia progredido e que Ernesto estava muito alto. Então embora a Flávia estivesse mais querendo descansar, seguimos a sugestão da médica, caminhando e agachando de tempos em tempos. Mais duas horas se seguiram nesses exercícios, nesse parto super ativo. Flavinha demonstrava sinais de cansaço, mas ainda reclamava muito pouco e conseguia rir e brincar durante as contrações.
No exame seguinte, Ernesto seguia firme e forte, desceu um pouco e a dilatação evoluiu para 5-6cm. Comemoramos a vitória. A médica disse, entretanto, que ele ainda tinha que descer bastante, disse que passássemos as duas horas seguintes exercitando na bola. Mandei mensagem para minhas doulandas dando notícias sobre o parto e elas ficaram um pouco preocupadas, porque já eram 14h, ou seja, 12 horas de trabalho de parto. Pedi pra tirarmos uma foto com cara de "olha como parir é fácil" e Flávia ganhou o prêmio parturiente artista do ano, olha que carinha mais de boa:
Aí deu-se o momento mais tenso de todo o nosso trabalho de parto. Até então, só nos deparamos com anjos. Toda a equipe muito carinhosa, simpática, humanizada e respeitando os desejos do casal, um cenário idílico mesmo. Mas a médica que veio então pareceu um trator. Já chegou reclamando, nos destratando a cada pergunta, dizendo que só estava fazendo um favor para a outra médica, quase me expulsando do quarto quando falei que era a doula. Auscultou os batimentos cardíacos do bebê, que continuavam super bem, e fez um exame de toque, saiu resmungando que nada tinha mudado e que teríamos que escolher entre ocitocina e cesariana. Cleidinho ficou transtornado. Exigiu acesso ao prontuário e à discussão quanto aos procedimentos, negou a ocitocina. Quando a médica disse que ele teria que se responsabilizar por não seguir a conduta indicada por ela, simplesmente respondeu: "Me diga onde eu assino". Todos estávamos muito tensos. Eu tentando apaziguar os ânimos, mas, no fundo, muito cheia de orgulho desse meu amigo, um companheiro e pai consciente, lutando para defender os direitos da companheira e do seu filho.
No meio de todo esse estresse, chegou mais um anjo, creio que o mais iluminado de todos. Lissandra. Até roubei uma fotinho do site da equipe de parto domiciliar dela, Nascentia, para colocar aqui. Vê se não é iluminada, essa mulher?
Ela chegou com o maior carinho, acalmou o Cleidson, disse para não nos preocuparmos porque nada nos seria imposto. Verificou que as contrações da Flávia não estavam mesmo tão eficazes quanto poderiam estar, mas se dispôs a negociar as opções que tínhamos. Ela se assegurou de que a médica anterior não mais nos atenderia, e conversou com a médica seguinte. Nos mostrou alguns pontos de acupuntura para estimular as contrações e combinou de esperarmos mais uma hora e, se a dilatação não mudasse, colocarmos ocitocina.
Depois do tempo combinado, a dilatação não evoluiu além do que já estava, coisa de 7cm. O horário do plantão delas estava no fim e elas disseram que certamente a equipe seguinte encaminharia a Flávia para uma cesariana e que, por isso, colocar a ocitocina seria nossa melhor chance de ter o nascimento via vaginal. Cleidson e Flávia toparam, mas consegui ver o pânico nos olhos da Flavinha. Afinal, eu já havia dito várias vezes que a ocitocina intensifica demais as contrações, causando muito mais dor. A essa altura, ela já estava muito cansada do prolongado trabalho de parto, já quase no limite. Conversando, expliquei que a vantagem da ocitocina era justamente abreviar o trabalho de parto e que, naquele cenário, eu concordava ser nossa melhor opção.
Aí o bicho pegou, né?! Contrações "pacabá" com qualquer mulher.
A essa altura a Flávia já estava pálida, mole, triste. Durante as contrações, gritava, arfava; entre elas chorava. Fazia força. Realmente achei que ela estava no período expulsivo, pelas posições que adotava e pela força que fazia, além de várias vezes dizer que queria fazer o número 2. Não chamamos ninguém e deixamos ela fazer força, na esperança de que Ernesto nascesse sem a intervenção da equipe.
Coisa de uma hora depois, a médica veio examinar: ela continuava com os mesmos 7cm, embora Ernesto tivesse descido. Eram 21h, já. A Flávia já não tinha mais forças para nada, estava física e emocionalmente exausta. A médica sugeriu então a cesariana, que foi prontamente acatada por ela, pelo Cleidson e com a qual concordei plenamente. Todos havíamos chegado ao nosso limite e se eu, que era só a doula, estava exausta, imagina a Flávia? Não havia a menor condição de ela continuar passando por aquele nível de contração até dilatar mais 3cm e o bebê nascer. Com o coração tranquilo por termos feito tudo o que podíamos, aceitei o inevitável, embora, claro, tenha ficado um pouco triste porque queria muito ver a Flávia tendo a experiência do expulsivo.
Aí, cara, é aquela coisa da cesariana, né?! Tudo tão rápido que a gente mal consegue processar... Levaram-na para o centro cirúrgico tão rápido que eu sequer consegui dizer tchau. Sentei no corredor, cansada, pensando em quanto tempo levaria até que nos víssemos de novo. De repente me chega Cleidinho, furioso, com toda razão, porque não o deixaram assistir ao nascimento. Disseram que em procedimentos cirúrgicos não pode entrar ninguém, nem mesmo o pai do bebê. Ficamos ali, então, naquela agonia, até que trouxeram a notícia de que Ernesto havia nascido e de que tanto ele quanto a Flávia estavam bem. Deixaram Cleidinho entrar e tirar foto, mas logo o botaram pra fora dizendo que ele encontraria a companheira e o bebê na maternidade, duas horas depois.
Nos olhamos, ainda bestas entre frustração, raiva, gratidão, mas principalmente muito, muito, muito amor. Levei ele pra casa dele, então, para que ele pudesse tomar um banho, comer e dar notícias aos familiares antes de voltar para junto dos amados que o esperavam.
Desse processo todo, tirei várias lições valorosas, mas ainda não consigo elaborá-las em palavras. Mesmo esse relato demorou muito mais do que o de costume (Ernesto nasceu dia 06/03) porque eu saí muito mexida, muito tocada, e foi uma sequência de acontecimentos fortes, um parto muito marcante do início ao fim.
A essa família sensacional, que conquistou meu coração de um modo único, meu abraço apertado de doula, minhas lágrimas de felicidade pela chegada de Ernesto, meu carinho e minha amizade, no que depender de mim, para o resto da vida.