quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Perdas

Hoje eu gostaria de conversar com vocês sobre um assunto difícil, doloroso e cheio de tabus: perdas que sofremos durante a gravidez. Vou falar de experiências próprias e de casos que acompanhei, e de antemão peço perdão se despertar sentimentos ruins em quem me ler hoje, mas vejo que o fato de ninguém falar sobre essas coisas joga ainda mais sombra em cima da dor, quando ela acontece nessa fase.
Ninguém deseja, em momento nenhum, sofrer perdas. Queremos viver de ganho em ganho. Estamos pouco acostumados a sofrer, buscamos logo algo que nos alegre, seja uma droga, seja uma viagem, sexa o sexo, seja um remédio. Fugimos das perdas, fugimos da dor de todas as formas que podemos e conhecemos. Durante a gestação, então, principalmente se foi uma gravidez planejada, nos sentimos realmente as mais poderosas do planeta.
Mas as perdas vêm em algum momento, durante toda a nossa vida. E quando sofremos perdas importantes durante a gestação, parece que elas são ainda mais sufocantes. Afinal, muita coisa já está mudando e nós já estamos muito mais sensíveis do que o nosso habitual, e a perda pode ser mesmo avassaladora.
Quando eu estava grávida de 4 meses da minha Alice, cujo sexo eu ainda nem sabia. perdi meu irmão caçula em decorrência de uma cirurgia. Não quero entrar em detalhes de como tudo aconteceu, mas foi absolutamente devastador para mim e para minha família. Meu irmão seria o padrinho da Alice, e eu já tinha dito isso a ele, que ficou todo babão e orgulhoso. No meio da tempestade que foram os primeiros dias sem ele, eu ouvia muito coisas como "tenta não ficar triste, não faz bem pro bebê" ou "logo, logo vai chegar um bebê e vai devolver a alegria para essa casa". Tudo isso soava muito, muito absurdo. Como não ficar triste diante da perda de um irmão de 19 anos??? E numa boa, por mais que a chegada de um bebê seja motivo de alegria, como é que isso iria apagar a dor pelo fato de o meu irmão não estar lá para acompanhar tudo isso??? O melhor conselho que eu ouvi foi de um tio, que me disse: "Tá louca? Chora, sim! O que faz mal para o bebê é você ficar retendo as suas emoções, chore o quanto tiver vontade", e foi o único conselho que levei a sério. Sigo chorando até hoje, mas tenho certeza de que isso não prejudicou em nada os meus bebês.
Assim como eu sofri essa perda tão forte, conheci outras mulheres grávidas ou puérperas que passaram pela mesma dor. E é muito difícil conciliar os sentimentos contraditórios: a dor pela perda e a alegria pela chegada do bebê. Se estamos tristes, nos culpamos por não festejar a nova vida; se estamos alegres, nos culpamos por não chorar a vida que se foi. É importante deixar a culpa de lado, e abrir mesmo o coração para todos os sentimentos dessa fase. Eu lembro que pegava a Alice no colo e conversava com ela mesmo, dizia o quanto eu estava triste pela ausência do tio dela, mas que eu a amava muito, e que isso não diminuía a felicidade por tê-la. Muitas vezes chorei com ela aninhada em meu colo. É importante permitir-se sofrer e permitir-se sorrir.
Essa dualidade já não acontece quando o assunto é a perda gestacional, é um aborto. O aborto é um mergulho silencioso, dolorido, íntimo e cruel num sofrimento sem fim e pouco compreendido. Já no atendimento médico, as mulheres são obrigadas a ouvir coisas como "Ah, isso é super normal", ou "vocês são jovens, logo poderão ter outro bebê", e não entendem que a mãe começa a nascer assim que aqueles dois tracinhos aparecem no exame da farmácia. As pessoas em volta começam a contar dos abortos que sofreram ou viram outros sofrerem, a achar que a mulher que perdeu um bebê está "fazendo drama". Perder um bebê é uma dor muito, muito intensa.
E embora eu nunca tenha sofrido um aborto, tive uma experiência muito forte nesse sentido também, o meu primeiro atendimento como doula. Minha irmã estava grávida de 20 semanas. Uma noite, fomos a uma roda de grávidas que falava sobre trabalho de parto. No dia seguinte, ela mandou mensagem dizendo que tinha sentido contrações durante à noite, e que pela manhã teve um sangramento forte. Falei para ela ir para o hospital na mesma hora, e a médica já não conseguiu ouvir os batimentos cardíacos do bebê. Um ultrassom confirmou a perda. Eu nunca havia acompanhado um parto, e agora era minha irmã ali, em franco aborto, no mesmo processo de um trabalho de parto, mas para expulsar de seu corpo meu sobrinho já sem vida. Foi muita dor. Horas e horas de contrações, tentativas de alívio, tentativas de compreensão, tentativas de aceitação. Fiquei com ela do início ao fim desse processo que também me faz chorar ainda, e que foi a primeira vez que doulei na minha vida.
Não há consolo, sabe?! A aceitação da morte de um bebê não nascido ainda vem com o tempo e muitas lágrimas, e muitas vezes só há cura - nunca esquecimento - com outra gravidez e nascimento.
A verdade inexorável é que morte e vida são partes de um mesmo ciclo. São duas pontas de um mesmo milagre. E a nós, seres humanos pequenos e limitados, não nos cabe em nenhuma medida determiná-las, apenas aceitá-las com a maior serenidade possível. Essa página é sobre o surgimento da vida, porém é importante que possamos tão abertamente quanto falamos sobre partos, falarmos sobre nossas perdas e dores também. Sintam-se acolhidas, todas as mulheres que passaram por dores semelhantes a essas. Abraço fraterno de doula. E aquelas que quiserem compartilhar aqui suas experiências doloridas, façam isso. Ajuda a curar e ajuda outras mulheres que passam pelas mesmas dores.
(Elisa Costa)
"São só dois lados da mesma viagem
O trem que chega é o mesmo trem da partida
A hora do encontro é também despedida
A plataforma dessa estação é a vida"

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